#8 Tenho medo mas não me falta coragem
O que é ser corajoso? O que o silêncio nos diz? Mais uma edição que prova que cabeça ocupada também pode ser oficina do diabo.
Eu tenho medo o tempo todo. Tenho medo nas noites encobertas e estreladas, nos dias de chuva e de céu azul. Tenho medo sozinha ou acompanhada. Aqui ou longe da terra. Ele me faz companhia, me acorda antes de o despertador tocar, me leva a conferir os parafusos e me mantém atenta mesmo quando não há sinal de perigo. Se eu cheguei inteira, não foi por ter coragem, mas por nunca ter deixado de ter medo.
Acho que nem é possível sentir a coragem. Ela está na esteira do barco, está no caminho que a gente já fez. Ela é o reconhecimento que o presente dá pro passado. Coragem foi seguir em frente, mesmo quando a razão trazia novos motivos para desistir.
Klink, Tamara. Nós: O Atlântico em solitário, 2023.
Tenho medo mas não me falta coragem. O que não necessariamente significa que sempre fui uma pessoa corajosa. Pelo contrário. Entre o medo e a coragem, predominou em mim, com toda certeza, o medo.
Na pré escola, “princesinha”: o apelido da garota que tinha medo de tudo. Nem preciso dizer que a garota era eu. Sempre corria dos jogos de futebol e, se percebesse que meus colegas se preparavam para um jogo de queimada, me escondia atrás das pilastras da quadra.
Na rua, não brincava, tinha medo de ser atropelada. Skate e bicicleta nunca fizeram parte dos meus passatempos, eu tinha medo de cair. Na psicina? muito cuidado, eu poderia me afogar. No mar? nem pensar. A correnteza é muito forte pra quem não sabe nadar.
Durante os dias, dança clássica, estudo de idiomas, rotina estruturada, livros, jogos da memória e bonecas. Era com a ajuda de uma televisão com uma programação repleta de novelas e da minha escrita em um caderno cor de rosa que eu experimentava tudo aquilo que meu medo me impedia.
Mas apesar de parecer uma coitada, não fui. Às vezes conto coisas assim a algumas pessoas e recebo um muxoxo de reprovação, palavras de consolo. “Coitadinha, ela não viveu”, costumam dizer, seguidos de “eu vivi muito, não tinha medo de nada”.
Honestamente, eu não me interesso em saber. Porque mesmo com medo, tive coragem.
Isso porque andar de bicicleta, perder parte do dedão do pé em um jogo de futebol de rua, tomar banho em uma cachoeira ou crescer ao lado de dois gatos e um cachorro pode até ser legal, mas não faz ninguém mais corajoso.
Coragem e medo, ao contrário do que muitos defendem, não estão em oposição, estão intimamente relacionados. É preciso de um para que se tenha outro.
Dizem que o medo está à espreita, mas quem de fato nos observa o tempo inteiro é a coragem. É ela quem está constantemente se esgueirando pelos cantos, pronta pra aparecer de supetão em qualquer ocasião. Como um estalo, um ímpeto, um rompante. Aquele primeiro fôlego que parece o último. É ela quem nos empurra rumo ao desconhecido, ainda que aparentemente o medo esteja tomando todo o espaço.
Coragem, para o senso comum, pode até estar atrelada a romper barreiras, viver situações de risco, pular de paraquedas. Mas ela está muito além de andar de montanha-russa e fazer uma viagem sozinho. Coragem é olhar pra vida de forma sensível. É achar que tudo tá perdido e ainda assim continuar tentando.
Só me entendi como sendo uma mulher corajosa quando enxerguei em mim a capacidade de amar, a habilidade de perdoar quem me feriu, e a força para encarar a mim mesma e minhas faltas, buscando aprimorá-las ainda que em meu pior momento. Assim, me desprendi do medo.
Aos vinte e cinco, renego finalmente o título de medrosa assim que entendo que o medo que carreguei por tantos anos não era meu. Ele me foi imposto.
Posso não ter tido muito pra contar nas aulas de segunda-feira, quando a professora de inglês me perguntava sobre o fim de semana, mas reconheço que tomei decisões de vida muito mais audaciosas que boa parte das pessoas que se orgulhavam de ter vivido momentos épicos.
O medo de viajar de avião não me impediu de bancar meus desconfortos em uma relação amorosa de anos; o medo de ser assaltada no Rio de Janeiro não me impediu de viver os dois melhores anos da minha vida na cidade e concluir uma pós graduação; o medo de voltar para a depressão não me impediu de ser feliz de novo; o medo de sofrer de amor não me impediu de me apaixonar; o medo de cães e gatos não me impediu de aprender a impor limites nas minhas relações familiares.
O medo, na verdade, ainda que seja lido como um limite, não nos limita, mas nos aproxima da coragem. Tanto medo como coragem são sintomas de quem abraça a vida. Uma vida que não existe sem inseguranças e incertezas. As duas melhores amigas do medo, e os maiores combustíveis para a coragem.
Na prateleira da vida, posso não colecionar medalhas esportivas e porta-retratos em acampamentos e viagens internacionais, mas hoje, uma vida como “princesinha” não mais me assusta. Porque que a coragem não grita. Ela sussurra. E aparece nas escolhas silenciosas.
A coragem está nas decisões invisíveis aos olhos.
Quem cala consente, mas consentir também é compreender?
Desde que não nos falamos mais, tenho entendido que o silêncio nem sempre significa compreensão. Receber o silêncio como resposta na verdade não costuma ser um indicativo de que as coisas estão resolvidas. Ao pensar sobre isso hoje, confesso que não consigo entender o porquê de não ter percebido isso antes.
Durante os últimos anos, eu realmente me senti compreendida. Acreditei que era amada porque você simplesmente me entendia. Percebia meu comportamento, lia meus sinais e era cuidadoso até mesmo com minhas inconsistências.
Hoje, ainda que depois de ano expulsa de um conto de fadas inventivo onde o protagonista era um homem perfeito escrito por uma mulher, eu ainda tenho dificuldades em encarar o mundo real.
Como autora, mesmo tendo decidido largar a caneta e parar de tentar incluir novos traços nas personalidades alheias para que as pessoas sejam mais palatáveis pra mim, ainda sofro as consequências.
Uma delas é perceber que o embate está muito mais ligado a compreensão do que o silêncio. O embate é sinal de disposição. Talvez o embate, o diálogo e o desconforto estejam mais próximos da real compreensão do que o silêncio disfarçado de acolhimento.
Que certeza se encontra no não dito? Se é na troca de olhares, nas expressões atravessadas, na procura inútil por palavras melhores e nos olhos marejados que se encontra a fragilidade, maior riqueza e capacidade de conexão humana?
O que o silêncio consegue me dizer?
Olhando em retrospecto, nada. Calar de fato, é consentir. Consentir em deixar as lacunas vazias falarem mais alto do que o próprio desejo. Consentir em deixar as coisas como estão. Consentir em anular o outro, anulando também a si.
É desconfortável falar, assim como é desconfortável escutar. Mas mais desconfortável ainda é sentir que perdeu pro vazio. Pro descaso.
Tenho preferido o barulho, ainda que não seja nada fácil pra mim. É horrível ouvir alguém dizer que discorda de você (como pode, logo eu?), ou que seu comportamento a magoou. Fico sem reação até me lembrar que é assim que relações funcionam.
Pessoas dispostas levam suas diferenças para um encontro. Pessoas preguiçosas dão uma festa e deixam suas individualidades de fora da lista.